sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Desestatizar a cultura

Fonte: http://blog.estadao.com.br/blog/piza/

Ainda paira sobre a cultura brasileira um espírito estatizante. Historicamente o intelectual brasileiro é funcionário público e isso se refletiu em sua visão de mundo. Mesmo que alguns tenham artisticamente transcendido essa condição, como Machado de Assis (funcionário de ministérios por toda a vida), Carlos Drummond de Andrade (que trabalhou com Gustavo Capanema nos anos Getúlio) e Guimarães Rosa (diplomata), não conseguiam disfarçar suas aversões à modernidade capitalista. Hoje em dia isso mudou, mas ainda é fato que na maioria os intelectuais são professores de universidades públicas. É rara no Brasil – ao contrário dos EUA e Inglaterra, por exemplo – a figura do intelectual público independente, sem ligação com instituição alguma, e que Edward Said julgava tão fundamental para a vida cultural de uma nação.
Mas não é só isso; o mais importante é notar que sem as grandes estatais brasileiras não haveria grande parte da produção cultural hoje. Banco do Brasil, Petrobrás e Caixa, além das secretarias estaduais e outros órgãos oficiais, sustentam o grosso do cinema, do teatro e da música erudita brasileira, para não falar da imprensa do setor. O que cria uma situação irônica: como essas estatais se beneficiam das leis de incentivo, que permitem abatimento fiscal dos patrocínios, o dinheiro do contribuinte financia duplamente cada evento (ao custeá-lo e ao ser abatido). Sim, há empresas privadas que apóiam a cultura, em especial os bancos, mas observe os letreiros da grande maioria dos filmes nacionais. Se o filme se passa na Bahia, invariavelmente terá apoio da Secretaria de Turismo da Bahia.
Há um problema de gênero nisso? Claro que não. Em todos os países, inclusive nos “liberais” EUA, há dinheiro público para a cultura, sobretudo quando se trata de ajudar a pagar as contas de instituições que nem sempre o mercado sustenta, como orquestras sinfônicas. O caso brasileiro exemplar foi o do Grupo Corpo, que apesar de todo o sucesso e prestígio perdeu o patrocínio da Shell, mas terminou sobrevivendo graças à Petrobrás. O problema é de grau: aqui não existe a contrapartida suficiente da parte da iniciativa privada, como existe, para dar mais um exemplo, nos museus do Hemisfério Norte, todos apoiados por grandes doações empresariais. Nossos museus, como se sabe, vivem à míngua – enquanto nossos intelectuais não se cansam de demonizar o lucro (dos outros, claro).
Aqui também há abusos que não fazem sentido para um país em desenvolvimento. Maestros que ganham melhor do que seus correspondentes estrangeiros, exclusivamente com verba pública, eis um caso escandaloso. Outro é a participação de recursos do contribuinte em empreendimentos que não precisam deles para ter lucrativas bilheterias, como o Cirque du Soleil. E nunca é demais lembrar a contaminação política do esquema de incentivos: verifique como algumas poucas famílias dominam as verbas para o cinema brasileiro. É preciso mexer nas leis e, principalmente, nos costumes para que a arte nacional não seja tão dependente do erário e para que as empresas percam os preconceitos. Precisamos decretar o iluminismo na vida cultural brasileira.

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